na capa, ilustração de gustave doré para o conto do pequeno polegar

ano passado, quando a taba começou o “desafio de leitura: 12 livros em um ano”, uma roda de conversa (via google+) em que discutíamos uma obra previamente escolhida, retomei o contato com os ditos “contos de fadas”.

 eu havia lido, com uns oito ou nove anos, uma coletânea dos contos de grimm, ocasião em que me lembro de ter ficado ligeiramente chocada com a crueza e violência das versões ditas “originais” (beeeeeem entre aspas, mesmo) – pois, sendo franca, minhas lembranças de fadas e princesas até então eram as versões disney (faz parte, gente!).

 enfim, quando a denise guilherme (da taba) sugeriu que lêssemos a edição da zahar sobre os contos, mergulhei de cabeça e encontrei versões já velhas conhecidas, mas também outras que mexeram demais comigo, como a do barba azul (atribuída a charles perrault) e da pequena sereia (de hans christian andersen).

o tempo passou e, semana passada, recebi de presente da aletria uma edição de barba azul, recontado e ilustrado por anabella lópez. e, olhem só que feliz coincidência, que timming perfeito, no mesmo dia tive o privilégio de participar de um evento incrível do lançamento do livro “contos da meia-noite do mundo”, de rodolfo castro, que nos traz versões bem malvadas de chapeuzinho vermelho, cinderela e bela adormecida. 

nessa ocasião, rodolfo – que é um contador de histórias da melhor qualidade – contou uma versão da cinderela, contextualizando o conto também no período histórico em que foi recolhido.

bem, e como a literatura também sofre influência da moda (hehe), alguns dias antes foi publicado na folha de são paulo (caderno ilustríssima), um artigo de bruno molinero comentando sobre lançamentos de contos de fadas em “versões originais” e voltados para o público adulto.

bom.

pausa para reflexões.

no meio disso tudo, tenho lido muitos livros e artigos sobre o tema “contos de fadas” – tudo graças à susana ventura e à pós graduação que estou cursando lá na casa tombada.

e cá venho eu pensar em voz alta, abrindo a porta para críticas e discussões: os contos que chamamos “de fadas” são, em realidade, contos populares, folclóricos, recolhidos e levados a termo por diversos “autores”, em épocas bem diferentes, cada um no seu contexto social, político e econômico.

alguns dos autores e estudiosos que li (ítalo calvino, angela carter, robert darnton) são unânimes ao afirmar que tais contos são originários das tradições orais dos camponeses, dos pobres, das classes menos favorecidas que, inclusive, eram quase que totalmente analfabetos.

lá pelos anos de 1.695, perrault recolheu alguns desses contos, lapidou-os para melhor agradar seu público (não nos esqueçamos que perrault vivia na corte do rei sol, ou luis XIV, em versailles, era funcionário público e participava de saraus promovidos pelas madames da corte, as chamadas précieuses): daí que na sua versão de chapeuzinho vermelho, a menina não come a carne da avó, nem bebe seu sangue enganada pelo “lobo”, e ainda podemos contar com a moral edificante que ele incluía ao final de suas narrativas.

os grimms, por sua vez, fizeram sua recolha quase duzentos anos depois de perrault, no intuito de registrar contos da tradição oral que fossem “puramente alemães” (gente!! como se as culturas fossem caixas estanques que não recebessem outras influências…). sem saber, registraram uma versão de chapeuzinho vermelho contada por uma vizinha alemã que, no entanto, era de origem francesa e havia ouvido a história de sua avó… eles também moldaram as histórias, juntaram fragmentos de versões e adequaram tudo ao que acreditavam ser mais adequado à sociedade da época.

embora talvez sejam os autores mais célebres, perrault e os grimms não foram os únicos a lançar por escrito as histórias do povo. lá no século XV, o italiano gianbattista basile já havia publicado seu pentamerão, uma coletânea com cinquenta contos tão ou mais sangrentos que nossos velhos conhecidos…

sendo os contos de fadas produto da “longa fermentação das mentes camponesas” (amo essa frase de calvino!), é fácil sacar que não, eles não eram destinados ao público infantil e nem tinham uma função pedagógica – até porque, minha gente, as crianças sequer existiam! todos os autores que li, até o momento, afirmam que as crianças (coitadinhas!) eram consideradas (i) bocas famintas para alimentar, numa época de penúria e escassez (daí ou eram expostas para adoecer e morrer, ou abandonadas à própria sorte nos bosques e florestas…); (ii) força de trabalho, sendo obrigadas a colaborar com tarefas para o sustento da família tão logo pudessem andar (pensem em crianças de dois, três anos fazendo trabalhos de roça, plantação, recolhendo gravetos…).

sobre as histórias, diz robert darnton: “pretendessem elas divertir os adultos ou assustar as crianças (…), as histórias pertenciam a um fundo de cultura popular, que os camponeses foram acumulando através dos séculos (…)”. 

de tudo isso, concluo: haja cuidado na hora de comprar “versões originais” porque né, cada um adequava, modificava, amenizava a história de acordo com seu público – não se sabe ao certo qual foi a primeira versão de um conto, ou qual seria a versão “correta” do conto… não sendo as histórias autorais, aqueles que as reduziram à versões escritas as transcreviam de acordo com seus próprios interesses (lembrem do perrault vivendo em versailles, gente! imagina que ele ia levar aos salões da corte, daquela corte, histórias horrendas com canibalismo e tudo o mais… jamais de la vie!).

claro, o que não quer dizer que tais publicações sejam ruins, não! são versões, e certamente valem a pena ser conhecidas… sempre tendo em mente o momento histórico em que foram registradas!

se você ama o tema tanto quanto eu, segue uma listinha dos livros e sites que me inspiraram a escrever esse post (e a continuar estudando, sempre!):

LIVROS:

– contos de fadas, coleções clássicos zahar, uma edição caprichada e comentada muito interessante;

– o grande massacre de gatos, robert darnton, editora paz e terra (está esgotado, mas é possível encontrar no estante virtual);

– 103 contos de fadas, de angela carter, companhia das letras;

– fábulas italianas, ítalo calvino, companhia de bolso;

– contos da meia-noite do mundo, rodolfo castro e alexandre camanho, editora aletria;

– morfologia do conto maravilhoso, vladimir propp, editora forense universitária;

– barba azul, anabella lópez, aletria.

LINKS

– https://www.cuatrogatos.org/docs/articulos/articulos_189.pdf

– https://www.youtube.com/watch?v=1lLue7Obokg

– https://www.youtube.com/watch?v=sTDF0YtWRO4

– https://biblioweb.hypotheses.org/2669

– http://expositions.bnf.fr/contes/

– www.ataba.com.br

CURSO

– www.acasatombada.com.br

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